A Polícia do Rio é o inimigo público n° 1?
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Por Jack Chang, McClatchy Newspapers
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RIO DE JANEIRO, Brasil — Apesar de saber os riscos que estava correndo, Jorge da Silva Siqueira Neto, pai de seis filhos, recusou-se a se calar quando policiais de um batalhão das redondezas invadiram a favela onde ele vivia e começaram a aterrorizar seus vizinhos.
Siqueira, 35, que liderava a associação de moradores da favela, procurou jornalistas, promotores públicos ou qualquer pessoa que ouvisse as histórias terríveis de extorsão, tortura e execuções praticadas por policiais fora de controle.
Então, no dia sete de setembro, ele desapareceu. Acredita-se que ele tenha morrido, e seus amigos estão convencidos de que ele foi morto pela polícia que denunciou.
Para muitas das 12 milhões de pessoas que vivem nessa metrópole, a denúncia corajosa de Siqueira revelou a crise moral que ameaça a força policial de 50.000 homens neste estado, enquanto lutam contra traficantes fortemente armados pelo controle das centenas de favelas da cidade.
A confiança pública na polícia tem decaído, na medida em que relatos de abuso e corrupção policial vão se multiplicando a cada dia. Muitos dizem que a polícia não pode mais ser diferenciada dos traficantes contra os quais está lutando."Jorge não morreu porque não tinha conhecimento do risco que estava correndo", disse Rossino Diniz, um amigo que é presidente da Federação das Associações de Moradores do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ).
"Não havia interesse em escutá-lo. Ele estava dizendo coisas que ninguém queria ouvir, e ninguém fez nada. Ninguém queria tocar no poder que a polícia tem nesta cidade."Durante o último ano, centenas de policiais estaduais, incluindo batalhões inteiros, foram ligados a um número chocante de crimes, desde tráfico de drogas e assassinatos indiscriminados até a venda de armas para as quadrilhas contra as quais estão lutando.A polícia formou milícias ilegais que tomaram dezenas de favelas dos traficantes apenas para praticar o mesmo poder violento sobre o dia-a-dia dos moradores. Siqueira estava denunciando uma milícia como essa quando desapareceu.
A crise atingiu tamanha dimensão que o Estado construiu uma prisão apenas para policiais. A instalação, projetada para abrigar 420 prisioneiros, já está quase sem espaço. Os registros da Polícia Militar mostram que mais de cinco mil policiais estão sendo punidos disciplinarmente, devido a uma série de violações de conduta.
A crise moral na polícia foi o tema de um filme de grande sucesso no Brasil, um thriller policial chamado "Tropa de Elite". Também gerou apelos por reformas essenciais e até licenciamentos de grande contingente de policiais.Alessandro Molon , Deputado do Estado do Rio de Janeiro que encabeça a Comissão de Direitos Humanos da Assembléia, disse que tudo, desde o treinamento até a investigação do passado dos candidatos a policiais, precisa ser repensado."Nós temos problemas muito sérios aqui, um problema de valores," disse Molon.
"Uma boa parte da sociedade duvida que ainda seja possível fazer alguma coisa contra a corrupção na polícia."Os críticos traçam a gênese da crise desde o início deste ano, quando o governador Sérgio Cabral ordenou que os policiais retomassem, a todo custo, comunidades inteiras controladas pelo tráfico. A polícia agiu agressivamente, invadindo favela após favela em batalhas campais que fecharam partes da cidade durante dias.
Primeiro, as operações receberam apoio popular dos moradores cansados das constantes batalhas entre as quadrilhas. Mas a opinião pública começou a mudar na medida em que surgiram evidências de que muitos haviam sido mortos pela polícia à queima-roupa, o que indica a possibilidade de eles terem sido executados. Cabral defende a polícia, dizendo que a grande maioria dos policiais é formada de "trabalhadores honestos" que não deveriam ser comparados com os poucos que foram pegos infringindo a lei.Mas a comoção pública foi tão grande que o Governo Federal do Brasil convidou um relator especial de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU) para visitar as favelas da cidade e investigar as acusações.
Depois de 11 dias de visita, o relator, Philip Alston , concluiu que a polícia do país pode "matar com impunidade em nome da segurança."Não há dúvida de que a polícia do Rio usa mais força mortal do que praticamente qualquer outra polícia no mundo. Nos primeiros 10 meses deste ano, ela matou 1.072 pessoas em confrontos. Em comparação, a polícia da cidade de Chicago, com 8 milhões de habitantes, matou 17 pessoas durante todo o ano de 2006.
Cinco policiais estaduais entrevistados por McClatchy destacaram uma série de problemas, desde baixo salário a falta de equipamentos, para explicar a violência. Eles observaram, por exemplo, que apesar de o salário médio dos policiais de R$800 se equiparar à média salarial do Brasil, a maioria dos policiais precisa ter um segundo emprego para sobreviver.
Os policiais freqüentemente também são obrigados a comprar sua própria munição e coletes a prova de bala.Como conseqüência disso, mais de duas dúzias de policiais estaduais foram mortos nos primeiros 10 meses deste ano. Isso é mais do que metade do número de policiais mortos no cumprimento do dever nos Estados Unidos durante todo o ano passado."No Rio, os policiais trabalham na linha que separa o bem e o mal," disse a policial Lidia Celina dos Santos.
"Mas eles estão constantemente sendo atraídos para o outro lado." Para piorar o problema, a polícia é enviada para comunidades pobres, há muito abandonadas pelos governos, onde traficantes são freqüentemente as únicas autoridades, disse o policial Tenente Melquisedec Nascimento, presidente da Associação dos Militares Auxiliares e Especialistas (AMAE).
Aproximadamente um quinto dos habitantes vive nessas favelas."O único órgão que deveria exercer o poder é o Estado," disse Nascimento. " Quando o Estado não está fazendo o seu trabalho, esses outros grupos, como quadrilhas e milícias, aparecem." Como resposta à crise, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva criou um projeto de R$3.7 bilhões para serem investidos em segurança pública durante cinco anos que, dentre outras medidas, traz mais serviços sociais para as favelas e dá aos policiais e suas famílias mais educação e apoio.Mas aqueles que vivem nas ruas pobres do Rio dizem duvidar que algum dia confiarão na força policial do seu Estado para protegê-los.
Um conhecido de Siqueira que pediu para não ser identificado com medo de represália observou que apesar de os quatro policiais que Siqueira denunciou continuarem na cadeia sob suspeita de liderarem a milícia, o desaparecimento de Siqueira continua sem solução."Ao contrário dos moradores que sofriam calados, Jorge falou a verdade," disse o rapaz. "E olha para onde isso o levou."
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